Acompanhei dois influenciadores fitness nos últimos meses e quase fui de arrasta pra cima de saúde mental.
Como ficar obcecada por alguém na internet me fez voltar 50 casinhas no jogo do amor-próprio.
Como eu não gosto de arrodeios: sim, eu fiquei obcecada pela Manu Cit e pelo Paulo Muzy. Eu, que fiz cinco cadeiras de marxismo na faculdade; eu que leio Mark Fisher, Byung Chul-Han e me acho muito antenadinha por conta disso; e eu que sou minimamente bem-resolvida com o meu corpo. É porque nada disso é só sobre eles (caso você os acompanhe, calma, não quero ganhar sua antipatia, rs), ou só sobre mim, é sobre uma nova fase da internet — e porque você deveria estar atenta a ela. Vamos pra fofoca?
Se eu te perguntar quem era a it girl (ou seja, a garota sensação) da sua época, quem você responderia? Fiz esse teste com meninas e mulheres do meu ciclo social (que modéstia à parte, é bem diverso) e compartilho as respostas — nada diversas, rs — que recebi: Julia Roberts, Hailey Bieber, Kate Moss, Jannie do Black Pink, Luana Piovani, o duo Christina Aguilera e Britney Spears nos anos 2000, Manu Gavassi, Jennifer Aniston, Kylie Jenner e Megan Fox (especificamente no filme dos "Transformers", segundo a minha fonte).
Essa lista tem mulheres que hoje em dia beiram os 60 anos e mulheres que não chegaram aos 30 ainda. Mas, além da cor, da classe social e do tamanho do jeans, elas têm muito mais em comum: ditaram/ditam o que você vai usar (ainda que indiretamente), qual cabelo é a tendência, qual dieta a gente tem que seguir. São rostos e espelhos do capitalismo da sua época.
Apesar de ter citado algumas it girls contemporâneas (a Hailey, a Jannie, a Kylie), existe um fenômeno que a geração Z, da qual eu faço parte, e as próximas que virão estão prestes a experimentar e que nenhuma outra experimentou nesta escala. A it girl/o it boy “acessível”: dê adeus às grandes musas do pop e boas-vindas à menina/ao menino que deu certo na internet, que mora no mesmo país que você, que parece “tão perto” da sua realidade.
Eles se parecem com a garota do TikTok, que não faz nada de mais, mas tem milhões de seguidores só compartilhando uma rotina que tem mais coisas em um dia do que a minha vida em um mês. Ou, para os meninos, com o médico maromba/blogueiro, com um dos maiores perfis do país no nicho, que mistura meritocracia com discurso motivacional.
O mais extraordinário deles? Se mostram como “reais”, na medida do possível. Não se rendem à onda de ostentação datada, não vendem o procedimento estético: vendem o processo para se tornar estético; te convencem que você poderia ser um deles,se você tivesse disciplina, foco, força, fé, comprasse o curso, a mentoria, o cupom da creatina especial etc. E aí a gente abraça esse discurso, né? Porque não é escrachado, porque tem de fato um fundo de saúde, porque eles parecem querer o nosso bem no fim das contas.
A geração Z não tem a calça de cintura baixa da Christina Aguilera para engatilhar, tem a Manu Cit sendo bonita, saudável, universitária, bem-sucedida, acordando às 4 da manhã, correndo 10 km por dia, gravando todos os próprios passos e dizendo que você pode – é só querer.
Estive obcecada por influenciadores assim nos últimos três meses e isso comeu meu cérebro. Para começar, um contexto:
Houve um momento na internet, acho que em meados de 2015/2016, em que os discursos de autoaceitação, amor próprio e positividade corporal estavam muito em alta. Geralmente eles tinham a ver com não se render ao padrão publicitário, abraçar vulnerabilidade, aceitar dobrinhas etc. A gente sabia (porque a gente sempre sabe, né, amiga?!) quem fazia isso porque acreditava e vivia na pele a experiência de ocupar um corpo não-padrão, e quem fazia só porque virou trend, porque queria receber o convite para posar na capa da revista X, porque adoraria fechar com a marca Y. Pois bem, as coisas deram uma leve piorada.
Se antes, mesmo que muito aos poucos e de uma maneira meio enviesada, a gente via alguns corpos mais reais (falar isso virou até meme, dá pra crer?) ocuparem a tela, a capa e o outdoor, menos de 10 anos depois a gente vive uma regressão assustadora quando o assunto é corpo. Só que vender insatisfação com a autoimagem de maneira explícita não é tão popular quanto na época do Tumblr, os discursos precisavam se refinar.
Desse refinamento nasceu a nova geração do lifestyle no Brasil: conteúdos mais leves, uma pegada mais “científica” (muitos profissionais da saúde embarcam nessa), perfis menos saturados, afinal, partem de uma rotina cujo foco não está no luxo, mas sim na disciplina que traz resultados tangíveis. Quem não quer isso?
E eu, que jurava que estava muito vacinada contra a meritocracia da vida/do corpo perfeito, porque sempre reconheci de longe o cheirinho de Tumblr e fórum de dietas malucas que pareciam sair dos posts de alguns, me deixei levar pelo discurso mais antigo do mundo: eu não sou diferente << só porque >> eu não quero. Por que eu não corro 10 km (vamo ignorar a doença autoimune)? Por que eu não consigo malhar 2h por dia (também ignora que você tem que trabalhar 8 horas)? Por que não acordar 4h da manhã e fazer devocional (essa aqui foi o auge da maluquice, nem crente eu sou)?
Neste novo efeito colateral da influência, em que a sua atenção não é fisgada pelo choque cultural da ostentação e do consumo exacerbado, mas sim por potencializar a sensação de pertencimento e de que “você também pode”, esses influenciadores — por mais diferentes que sejam de você — precisam te convencer de que a única coisa que te separa deles é a sua falta de determinação. Aliado a isso, vem o combo de consumo, porque “determinação” pra eles também pode ser: a pílula x que cresce cabelo, o suplemento Y que te mantém focado, a roupa nova de academia, o celular melhor para capturar os seus treinos e a sua melhor versão que nasce ali naquele tatame de crossfit etc.
É isso que o Mark Fischer chama de realismo capitalista: é ótimo que você tenha tido uma epifania sobre o quão adoecedor pode ser uma internet que é meio revista Caras nos anos 2010 mostrando o look caro da atriz global. Mas será que você sabe reconhecer os mesmos discursos de privilégio econômico envelopados em uma conversa inocente sobre exercício físico? Sobre “lei da atração”? Sobre o quanto ter tempo, na cabeça dessas pessoas, não é uma questão de privilégio e sim uma mera escolha?
Eu não soube. Em pouquíssimo tempo, acompanhando dailys de personalidades do tipo citado, lives com médicos marombas e tudo mais (só Deus sabe a vergonha de admitir isso aqui) eu só conseguia me achar preguiçosa, incompetente, desleixada, incomum, com vontade de fechar um carrinho da Amazon a cada dia…Não tem bolso nem saúde mental que resistam a isso.
Conversando sobre o tópico com uma amiga muito mais versada em Mark Fisher que eu, ela disse a seguinte frase que curou o meu vício na vida perfeita dos med-influencers.
“Eu entendo o apelo deles, acho que funciona para um determinado público. Mas eu te conheço, Ylanna. Eu sei da sua vida. Por que você tá buscando motivação em pessoas cujos motivos (pra ser assim) não têm nada a ver com os seus?”
Talvez o fechamento desta newsletter seja óbvio pra você: mas a gente precisa entender o motivo por trás das nossas coisas, para não nos coisificarmos diante de qualquer rotina que pareça minimamente replicável, para não cairmos na loucura do consumo. Pra não virar produto na mão da indústria do seja-sua-melhor-versão-todos-os-dias-obrigatoriamente-vai-lá-sua-preguiçosa.
Do mesmo jeito que existem mais coisas entre o céu e a terra do que a gente pode explicar, existem mais coisas entre você e a sua vida dos sonhos do que só preguiça, má vontade, falta de vergonha na cara. Pensar essas coisas sobre você mesma só vai fazer com que você se odeie.
Você não precisa se acomodar e abraçar os seus maus hábitos, mas você também não precisa de um monte de gente que levou boa parte da vida no very easy que o dinheiro possibilita te culpando por coisas que, sei lá, não são culpas suas?
Eu não quero mais esquecer dos meus motivos, porque o caminho mais curto para te fazer odiar tudo você é hoje é te fazer esquecer de onde você veio. Por aqui, continuo na jornada de tentar lembrar a razão pela qual quero ser mais saudável – e quem sabe encontrar gente que compartilhe verdadeiramente dessa vontade comigo na internet. De preferência, sem querer me vender que eu sou uma fracassada a cada cinco minutos, rs.
Dito isto, foi só sair dessa espiral maluca que eu comecei a correr – fiz 5 km na rua dia desses. Estou limpa de compras fitness desnecessárias há 20 dias e nunca mais vou achar que comer carboidrato depois das 18h é tão feio quanto xingar a mãe. Not today. :)
que belo texto, Ylanna. é muito sedutor esse discurso de que você não será “apenas” sua melhor versão, mas a mais limpa, disciplinada, atômica, perfeita. não por acaso o estoicismo anda tão pop. é uma especie de meritocracia que funciona, como vc muito bem notou. seguimos pensando 🤓
Excelente, Ylanna! No fundo a gente pode seguir o que quiser, contanto que não se perca da gente mesmo. As distrações são muitas... que tenhamos foco força e fé no que nos faz sentido.