No texto da newsletter passada, terminei falando que aqui em São Paulo, ao menos no meu círculo social, é comum a gente mandar invite para marcar de se encontrar. Aquela espontaneidade de: "Amiga, tá em casa? Tô passando aí!" é algo que a gente vive em ano bissexto. A cidade é enorme, os círculos sociais se ampliam, tem tanta gente massa… Por um lado é maravilhoso, que sorte a nossa! Por outro, tenho sentido falta da recorrência. Com quem a gente passa vários domingos esparramado no sofá, enquanto as crianças brincam? É a cidade que nos afasta? São os muitos amigos? É a idade?
Também não paro de pensar no quanto a gente se comunica o tempo todo, mas não se conecta na mesma proporção. De quantos grupos de amigos no Whatsapp você faz parte? E qual foi a última vez que você encontrou os amigos desses grupos?
Nem é sobre o Zap, bichinho. Ele pode ser bom em alguns momentos. Pode render boas conversas, nos conectar. Mas o quanto nos acomoda também? A gente sabe que o outro tá ali, acessível. Mas o quanto o outro, e a gente mesma, está disponível para o outro? E aqui já acrescento os stories no bolo. Não é porque sabemos o que o outro está fazendo que conseguimos arranhar a superfície de realmente saber o que se passa em sua vida. A gente sabe disso, mas ainda cai na armadilha de dizer, quando alguém conta uma novidade: "Ah, eu vi nos seus stories!"
Ouvindo um dos melhores episódios de podcast que ouvi recentemente, fiquei com essa frase da Esther Perel, que estava sendo entrevistada pela Brené Brown: "Tenho mil amigos, mas nem uma pessoa para alimentar o meu gato, para buscar um remédio na farmácia." Ela fala que a gente deveria falar menos em IA (inteligência artificial) e mais em AI (intimidade artificial). Eu amo cérebros que pensam assim, que nos levam a dar um freio num tipo de discussão e desviar a rota para outra, muito mais importante.
Eu não tenho pra quem pedir para aguar as plantas de casa quando a gente viaja. A gente pede pro zelador do prédio. O cachorro a gente acabou mandando pra casa dos avós, porque um cachorro e um bebê no meio da pandemia só nos deixou com ranço de todos aqueles vídeos fotos que mostravam uma bela interação entre os dois, rs. Parece que a ajuda vem quando a gente tá no perrengue, ou quando a gente paga por um serviço.
Mas e no dia a dia? A quem a gente recorre? Quem nos faz companhia com constância? Quem é a nossa rede de apoio? Para quem a gente liga quando precisa de companhia pra fazer um exame? A gente liga, aliás? Ou estamos todos tão ocupados que nem cogitamos "incomodar" o outro com um pedido nosso?
Enquanto pensava nisso tudo, num domingo depois de ir ao teatro com minha família, paramos numa livraria. Aliás, sabe que eu tenho culpa de comprar livro? Ganho tantos que deixo a livraria só como um lugar que eu vou, não onde consumo. Mas nesse dia eu me libertei desse peso besta e fiquei olhando alguns títulos do Byung-Chu Han, filósofo sul-coreano que é autor de livros fundamentais, entre eles o mais citado em 9 entre 10 conversas contemporâneas, "A sociedade do cansaço". Acabei escolhendo esse "O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente", que já começa assim: "Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geraram uma comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma comunicação sem comunidade".
Bingo! Muita comunicação, pouco pertencimento. É muita comunicação, muito contato, mas quem é a nossa comunidade? Quem leva nosso filho na escola, se a gente precisar fazer uma reunião mais cedo? Mais do que isso, com quem a gente desfruta a vida? Não só fazendo um programa muito legal, mas "só" ficando na companhia uns dos outros? Deixando o tempo passar, a gente existir sem obrigações, sem objetivos?
Fiquei pensando em quais lembranças meu filho vai ter de quem eram as pessoas que estavam com a gente durante sua infância. Quem frequentava nossa casa? Quem ia jantar uma pizza lá num dia de semana? E sessão de cinema com pipoca, com quem dividíamos esse tempo?
Me deu uma vontade de ritualizar mais a vida. Vocês que me leem já sabem muito como eu funciono. Gosto de traçar objetivos, adoro mandar o invite do próximo encontro, isso eu preciso confessar. Então, será que dá pra pensar em como a gente se encontra mais vezes, de forma recorrente? [Aliás, esse rituais + comunidade é o tema do mês na Comunidade Contente, você já faz parte? Vem, que é massa demais!]
"Os rituais dão forma às passagens essenciais da vida. São formas de conclusão. Sem eles, deslizamos pela vida agora. Ganhamos idade sem que fiquemos velhos. Ou permanecemos consumidores infantis que nunca crescem. A descontinuidade do tempo próprio dá lugar à continuidade da produção e do consumo", diz o filósofo em mais um trecho que grifei.
Ele acrescenta que a repetição é a característica essencial do ritual. E é disso que sinto falta: repetição. "Rituais podem ser definidos como técnicas simbólicas de encasamento. Transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobiliam-no."
Juntando as referências, a certa altura do podcast da Brené, a Esther fala que "a qualidade das suas relações determina a qualidade da sua vida". E nisso eu acho que tô bem demais. Criei minha aldeia cheia de gente massa. Mas me arrisco a dizer que a gente vai conseguir sentir o tempo correndo de um jeito diferente quando a gente falar de quantidade também. A gente quando se junta passa melhor por qualquer coisa. Por que ainda estamos, no caso eu, caindo na armadilha de tratar o afeto como mais um item da agenda?
"Qual é a escala das relações e da comunidade que a gente constrói?", pergunta Esther. Não vai dar pra ter recorrência com todo mundo que eu gosto. Mas com quem quero passar muitos domingos na vida? Será que um dia eliminamos os invites e deixamos a porta aberta para quem quiser chegar? Fico lembrando do meme em que a pessoa diz que gosta de deixar a vida fluir, mas precisa saber onde e quando, rs. Talvez por um tempo eu ainda vá ter que dar contorno à espontaneidade, os invites virão. Mas que eles tenham a intenção implícita de ritualizar a vida. Estamos precisando <3
que edição preciosa, eu to apaixonada! leria mil vezes! <3
Faz muito sentido Dani. Excelente texto.
Falei um pouco disso no meu último texto da newsletter quando, durante um casamento de uma amiga (que é um ritual) eu percebi que tinha me afastado dela. Segue:
https://claravanali.substack.com/p/89-octogesimo-nono-gole-aqueles-que