As crises abocanharam as crianças e os adolescentes
E agora? Um mergulho sem atalho no estado de alerta permanente que ronda a infância brasileira
Eu ainda estava tentando entender a foto do lençol no portão quando descobri que a história era real: um garoto de 14 anos matou a família. E a arma principal talvez não tenha sido a pistola, mas a mistura explosiva de solidão, telas e um jogo de terror que prometia poder a quem se sentisse pequeno demais.
Abri o celular cedo demais naquele 25 de junho e dei de cara com a notícia: um adolescente do interior do Rio de Janeiro havia atirado nos pais e no irmão de nove anos porque precisava “limpar o caminho” para viver um amor virtual. A investigação logo ligou os pontos: o casal de namorados se inspirou em The Coffin of Andy and Leyley, um game underground que glamouriza incesto e assassinato. A polícia também encontrou prints de conversas nas redes, roteiros macabros escritos como se fossem cenas de um filme B. Eu rolei o feed tentando encontrar ar. É duro admitir, mas no Brasil de 2025 a linha entre fanfic mórbida e manchete sangrenta ficou tênue demais.
Passei o dia inteiro com aquela pergunta atravessada: o que está acontecendo com aquelas que são as fases mais primordial das nossas vidas (a infância e a adolescência)? Onde mora a esperança de novos caminhos para quem está crescendo no olho do pior furacão da internet?
Passou-se o tempo em que essa indignação era só sobre demonizar videogames (eu amo Zelda desde a locadora). É sobre a quantidade de tempo em que meninos e meninas ficam navegando sozinhos num oceano de estímulos sem bússola emocional, enquanto nós — sociedade, Estado, marcas — seguimos cronometrando cliques e celebrando “engajamento”.
Duas manhãs depois, outro número me deixou zonza: um em cada três jovens que apostam online admite que só conseguirá entrar na faculdade se parar de jogar
A pesquisa O Impacto das Bets 2, feita pela Associação Brasileira de Mantenedoras de ensino Superior (ABMES) e o Educa Insights com mais de 11 mil entrevistas, cravou: 34,4% dos apostadores de 18 anos precisarão cortar as apostas para começar o ensino superior em 2026 — e eles não estão dispostos. Essa fatia soma quase 1 milhão de possíveis calouros que já estão trocando matrícula por giro de slot — gente que, no papel, deveria estar se preparando para escolher profissão, mas que hoje decide tentar sorte ou azar em cassinos digitais e fazer disso “profissão”.
Eu sei que estatística às vezes parece fria, mas tenta imaginar: quantas histórias talentosas a gente perde quando a promessa de lucro fácil vence o tempo longo da educação? Quando junto os pontos, o enredo é o mesmo do crime no Rio: uma indústria de atenção devorando cérebros ainda em fase de montagem. Existe uma guerra declarada contra
o futuro das próximas gerações.
Foi com essa constatação de que a infância e a adolescência andam em disputa — e em crise — que criamos a #ainfânciaqueagentequer.
Sempre falamos sobre o tema. Mas a iniciativa ficou mais forte a partir de 2023, quando percebemos que falar de telas e saúde mental infantil precisava ir muito além de reforçar o pessimismo já latente naquela época. Entrevistamos pediatras, psicólogos, juristas, educadores, mães solo e todo mundo que topasse “pensar alto” conosco.
Dois anos depois, a hashtag virou banco de fontes, inspirou debates on e offline e nos ensinou lições valiosas: não existe conversa sobre infância sem incluir brincadeira, nem pesquisa sobre adolescência sem tratar de desejo e pertencimento. E, sobretudo, não existe comunicação responsável se ela não couber na vida real de quem acorda às 5h para pegar ônibus e ainda precisa achar tempo para ajudar o filho na lição.
Esse aprendizado inteiro agora tem mais de um CEP: Contente faz as malas (e leva as metodologias) para dentro do Portal Lunetas. Porque duas redações que cuidam de infância valem mais que uma e porque aproximar mundos é o jeito mais rápido de ampliar escuta.
Você talvez já conheça o Lunetas: jornalismo calmo, olhar generoso, reportagens que tratam criança como sujeito de direitos, não como mini-adulto. O que talvez não saiba é que, nos bastidores, eles sonhavam em dinamizar e ampliar essas conversas, com mais pesquisa de campo e narrativa de dados, mas faltava fôlego. Nós sonhávamos em ter um portal inteiramente dedicado ao tema para experimentar formatos além do carrossel de Instagram. Adivinha? Sonhos são mais fáceis de financiar quando se tem um projeto comum.
A partir deste mês dividimos pauta, sala de reunião virtual e, principalmente, responsabilidade. Vamos publicar especiais que atravessam regiões, fases da infância e tipos de parentalidade e que tragam vozes pouco ouvidas: conselheiros tutelares, mestras da cultura popular, nutricionistas de creches comunitárias, lideranças indígenas que inventam brincadeiras decoloniais no quintal. Nada de soluços jornalísticos isolados: vamos maratonar cuidado. Demais, né?
E, falando nisso, agosto está logo ali, batendo na porta com a força da Lei 14.617: o Mês da Primeira Infância
A gente prefere transformar a data em verbo: convocar marcas, fundações e órgãos públicos para somar inteligência, recurso e afeto numa frente ampla que diga, em alto e bom português, que criança não é target de marketing, é prioridade nacional.
A lei sancionada em 2023 institucionaliza o mês, mas ela sozinha não garante tudo — especialmente na internet. Precisamos de parcerias dispostas a colocar a mudar as narrativas sobre infância e adolescência: financiar coberturas de fôlego, abrir dados para investigações, olhar para as diversas realidades que compõem o ser criança no Brasil. Cuidar para não lamentar, para não virar manchete.
Então, se você trabalha num lugar que quer abrir essa conversa sincera com famílias, numa fundação que aposta em educação, numa secretaria que quer mostrar serviço além de calendário, chega mais. Vamos desenhar juntos essa frente ampla que cuida das crianças e dos adolescentes que já existem — não como uma promessa de um futuro distante, mas como compromisso público. Há muito o que se fazer.
Eu prefiro acreditar que aquela terça-feira cinza não foi ponto final, foi vírgula. Que o giro perigoso das bets ainda pode ser freado por projetos que devolvam horizonte aos estudantes. E que o próximo breaking news envolvendo criança brasileira seja sobre uma lei recém-aprovada, uma escola reconstruída, uma política pública que deu certo.
Sou mãe de um menino adolescente e gostaria de contribuir com a comunidade. Se algo estiver ao meu alcance, estou por aqui como aliada!