Do cigarro à inteligência artificial: o que fazer para a regulação chegar antes do estrago?
Para você que não pediu, mas já é cobaia do maior experimento do mundo
Eu não aguento mais ser cobaia de experimentos tecnológicos.
Essa frase é a síntese perfeita de que nenhuma invenção é só boa ou só ruim: cada uma vem com seu próprio naufrágio. Ok, mas como funciona então a sua regulação pra gente parar de afundar?
Toda invenção, ação ou tecnologia tem uma linha do tempo regulatória que segue um padrão bastante comum. O problema é que essa linha do tempo não chega nem de perto a acompanhar a velocidade da inovação.
A estrutura de uma curva típica de regulação é a seguinte:
Fase 1 - Introdução sem regras | 0 a 10 anos
A tecnologia surge e cresce rapidamente sem leis específicas. O produto é celebrado como um avanço: moderno, útil, revolucionário; o risco é ignorado ou desconhecido.
Exemplo: na primeira metade do século XX, o cigarro era símbolo de status e até recomendado por médicos em anúncios.
Fase 2 - Primeiros alertas e negação | 10 - 30 anos
A popularização causa efeitos colaterais (como acidentes, uso indevido, impactos sociais) que mobilizam a atenção pública e acadêmica. Estudos científicos começam a apontar riscos e a indústria responde com campanhas de desinformação, financiamento de estudos duvidosos e lobby contra regulações.
Exemplo: já na década de 1950 havia estudos ligando cigarro ao câncer de pulmão, mas as empresas contestaram por décadas.
Fase 3 - Regulamentação inicial ativada por pressão social | 30 - 50 anos
Começam a surgir leis. Na literatura sobre regulação de tecnologias emergentes, essa fase é descrita como a transição de incerteza regulatória para a construção de padrões mínimos. Se instaura uma crise de credibilidade e polarização: evidências se tornam inegáveis, começa uma disputa entre o interesse público e os interesses econômicos e a opinião pública se divide.
Exemplo: na década de 1980, campanhas antitabagismo cresceram, mas a regulação ainda era fraca.
Fase 4 - Maturação com normas estabelecidas, fiscalização e cumprimento | 50+ anos
A regulação se consolida com normas, fiscalização e penalidades, atingindo um patamar de equilíbrio. Proibições, restrições de marketing, impostos e advertências passam a ser implementadas; o consumo diminui, e o produto perde seu apelo simbólico.
Exemplo: leis antifumo, aumento de impostos e embalagens com imagens de doenças são políticas recentes — muitas implementadas 60 a 80 anos após os primeiros alertas.
Mas atenção: nada está garantido.
É preciso estar atento. Ainda usando o exemplo do cigarro, vimos que essa indústria repaginou o produto: e foi assim que uma das gerações mais obcecadas por corpo e performance também é a que tem caído no conto do vigário de que os vapes e pods, por não terem o cheiro clássico do cigarro, virem com aroma de frutas e serem fáceis de transportar, são uma “alternativa melhor”. Spoiler: eles podem ser pelo menos 6 vezes piores.
Essa linha do tempo mostra que o atraso na regulamentação não é por falta de informação, mas de vontade política, pressão econômica e complexidade social. Muitas vezes, somente após graves consequências e pressão pública massiva é que a regulação chega.
Não podemos despejar somente no colo do indivíduo a capacidade de autorregular o seu uso tecnológico. É desonesto, pois já sabemos como essas tecnologias são capazes de cooptar nossas emoções e nossa atenção.
Não é porque um produto está na prateleira que deveríamos consumi-lo.
Regulação não é censura, é proteção.
E a pergunta que fica é: vamos esperar décadas de danos para agir de novo?
Confesso que essa lentidão na regulamentação me dá um calafrio. Me reconheço resistente de Inteligência Artificial, não uso, não tenho vontade de aprender e sei que vou ficando pra trás. Abraço isso ou dou o braço a torcer? O meu sentimento é o que você falou: "Eu não aguento mais ser cobaia de experimentos tecnológicos."
“Não é porque um produto está na prateleira que deveríamos consumi-lo”. Perfeito! Isso me remete ao argumento clássico dos usuários-devotos de IA: “você vai ficar pra trás no mercado”. Uma urgência da necessidade de convencer, uma chantagem irracional para um movimento que mais parece uma seita. É bizarro!