Há de errar com frequência quem frequentemente está presente
O que a gente faz com isso?
Começo esta newsletter do jeito que Freud gosta: com um daddy/mommy issues de leve. Brincadeira, são 8h da manhã, eu não faria isso com você. Mas, o pontapé inicial para o tema deste texto foi justamente um tweet sobre maternidade — algo que não experiencio, então estou sempre do lado do filho que de maneira errônea lê aquilo e pensa “não é meu problema” — só que desta vez foi diferente.
@pascalkirchmair
O tweet em questão dizia algo como “talvez você tenha tanta percepção dos erros da sua mãe na sua criação porque ela era a única verdadeiramente presente”. Nem os arranha-céus mais imponentes de São Paulo seriam capazes de representar o tamanho do prédio que essa frase alugou na minha cabeça.
A depender das suas próprias relações familiares, esse pode ser o momento em que você larga a mão deste texto para não ser gatilho. Porém, deixa eu te tranquilizar: essa não é uma conversa sobre tolerar o intolerável na sua família, nem sobre se desrespeitar para caber em certas configurações parentais. Este sequer é um texto sobre pais e mães. A conversa de hoje é sobre relações humanas, presença, culpa por antecipação e como tudo isso nos empurra para o que eu vou chamar aqui de fetiche da solidão.
Desde que eu esbarrei com esse post, venho pensando de forma obsessiva sobre o que é ser presente na vida dos outros. Eu não sei você, mas tenho reparado em mim mesma e tudo o que eu tenho feito ultimamente é evitar outros seres humanos da maneira mais sutil possível, rs. Admitir isso é cringe, mas é necessário. Será que você se identifica também?
Toda vez que eu finjo que tô mexendo no celular para não interagir com alguém numa fila qualquer, eu nego presença. Sempre que eu coloco o fone — e geralmente não tá tocando nada — só para não ter que conversar, eu também faço isso. Quando eu saboto as minhas amizades, demorando de propósito pra responder porque acho que a conversa vai se estender demais, eu tô me ausentando. Escolher ficar scrollando o Twitter numa mesa de jantar cheia de pessoas que eu tava louca pra ver, também é uma espécie de fuga. Não preciso expor mais maus hábitos, né? A essa altura com certeza você já entendeu.
@keannairving
Claro que você também pode optar por essas coisas por muitas razões: introspecção, timidez, ser uma pessoa mais reservada, ter baixa manutenção dos afetos etc. Não significa necessariamente que tem algo de errado. A menos que você goste da sua versão que conversa, conhece gente nova e vive em comunidade e, ainda assim, não está conseguindo vivê-la. Eis o meu BO.
O fato é que a presença que a gente não dá aos outros ou a nós mesmos é espelho dessa intolerância ao erro, dessa culpa por antecipação, de uma “preguiça” de interagir que tem tudo a ver com o avanço dos dispositivos móveis. Isso porque a gente projeta na presença a responsabilidade onisciente de saber tudo sobre o outro, de conhecer cada detalhe e, consequentemente, de não errar mais. Daí, quando a gente erra (porque isso sempre vai acontecer), ou quando o outro erra conosco (coisa que também vai rolar com muita frequência), ficamos com medo da presença, nos tornamos ausentes, fetichizamos a solidão.
Achar que ser presente é ser perfeito é o que nos leva a romantizar o estado de “melhor ficar só, porque aí eu me protejo”. Na nossa cabeça, esse mecanismo serve para nos blindar do pecado gigante que é errar de vez em quando. Mais que isso: ele nos impede de um dia ter que descer do alto do nosso orgulho para nos desculparmos, para revermos rotas, para entender porque cometemos os mesmos erros sempre. É aqui que a grande chupeta do adulto, vulgo celular, entra: a sua presença inanimada é suficiente para ele e vice-versa.
Se o trecho que eu citei no início dessa news também alugou seus pensamentos, eu sugiro que você comece a pensar em algumas coisas. A começar por uma muito específica: o preço que a gente paga pela intimidade, pela vida em comunidade, por criar filhos ou por sermos criados por pais reais é justamente um eterno reajuste de rota. É saber falar um “me desculpe” de vez em quando, é não achar que o celular vai ocupar todas as nossas lacunas, é olhar para os erros de maneira mais natural. É um convite para ser um adulto saudável. É ser presente e presença. E aí? Vamos tentar?
Eu amo a forma como vocês escrevem, sempre me prende a atenção e sempre com temas relevantes. A propósito, eu não permiti explanar minha vida na internet, não, hein?! Nenhuma experiência é individual mesmo, obrigada por trazer essas reflexões.
me identifiquei, definitivamente um soco no estômago. adorei o texto.