O que eu quero para o mês das mulheres?
Que a gente saia do departamento das negligenciadas em série.
Eu me considero alguém com excelente memória a longo prazo, aquela que se refere a coisas das quais já se passaram muitos anos. Isso significa que com alguma frequência eu lembro de situações específicas da minha vida, principalmente da infância. Dia desses, não por acaso, afinal estamos no mês das mulheres, lembrei da primeira vez que entendi – e achei curioso, porque na época me faltava o conhecimento da palavra absurdo – a diferença, que eu não sabia de onde vinha mas que com minha pouca idade já estava posta sob a minha vida, entre homens e mulheres. Ou meninos e meninas, na minha realidade.
Era uma tarde qualquer, eu devia ter uns 10 anos, estava no meio dos adultos, quando minha mãe e outra pessoa da minha família conversavam sobre uma terceira mulher que havia sido mãe recentemente. Essa conversa descambou para a seguinte frase: “fulana teve até pedra nos rins depois dos gêmeos, não tem tempo nem pra beber água”. Eu arregalei meus olhos juvenis, era muita informação. Primeiro que quando você é criança e escuta o termo “pedra nos rins” é impossível não imaginar uma formação rochosa enorme crescendo dentro de alguém. Assustador. Segundo porque, até para adultos, é difícil imaginar que alguém pode estar tão ocupado que sequer lembre de beber água. Eu achei que era um exagero, daí perguntei “Pedra? Ãn?”.
Para a minha surpresa, mas não das mulheres adultas da conversa que já pareciam ter aquilo como dado e falavam com certa naturalidade sobre, era mesmo uma doença. Uma doença que veio porque uma mulher, que se tornou mãe de dois e era casada, não conseguia lembrar de fazer o básico porque estava sendo engolida pela mais nova rotina. Eu não quero assustar você, nem demonizar algo que eu sequer vivo, nem pesar o clima nesse pós-8 de março (beleza, talvez seja tarde demais), mas eu ouvi histórias como essa a minha vida toda – e as personagens eram sempre muito parecidas. E tudo bem, eu sou uma 1999’s child, as coisas devem ter mudado, né? Não sei se o suficiente.
Mais velha, conheci uma menina que no auge do ensino médio, quando todo mundo deveria estar preocupado com espinhas, boyband e paixões não correspondidas, precisou abandonar todos os sonhos para cuidar dos pais idosos. Mesmo tendo irmãos (assim, no masculino) mais velhos. Também participei de inúmeras festinhas de aniversários, formaturas e confraternizações de fim de ano totalmente organizadas por mulheres – e se contavam nos dedos os homens que se faziam presentes, demonstravam algo além de impaciência e desinteresse, que sabiam a idade dos seus filhos (não é recurso discursivo, eles não sabiam mesmo).
Conheci e continuo conhecendo mulheres das classes C e D deste país que têm quatro jornadas de trabalho: a doméstica, a profissional, a materna e aquela de origem logística – que inclui manter tudo isso funcionando. Mas que não conseguem ir ao ginecologista, por exemplo, há anos. Porque é caro, porque marcar no SUS requer um tempo que elas não têm, porque a rede de apoio ainda é exceção. E porque o pediatra para o filho, o geriatra para o idoso da família, o clínico geral para o marido não podem ficar para depois, mas elas sim. Elas sempre.
Eu não quero fazer desta newsletter um muro das lamentações e nem nos culpar por coisas que claramente não são nossas culpas. Afinal, a gente é ensinada desde cedo que cuidar dos outros é um imperativo feminino, apesar de não existir nenhuma garantia de que vamos conseguir fazer isso por nós mesmas. Mas se tem uma coisa que eu quero muito entender, agora com quase 25 anos, é porque é visto como legítimo, natural e esperado que mulheres sempre sejam negligenciadas? Por qual razão, mesmo 15 anos depois dessa lembrança da infância e com todas as discussões sobre economia do cuidado, parentalidade, trabalho e gênero, parece que o custo para termos famílias (lê-se filhos e cônjuges, mas também pais, avós e demais pessoas que geralmente caem sob os nossos cuidados) é sermos os únicos alicerces delas?
Como a internet quase sempre é um espelho do nosso tempo, e para colaborar com a teoria que constitui esse texto e que eu tenho apelidado de “departamento das negligenciadas em série”, duas trends em alta trazem bem o impacto da negligência em diferentes níveis. Uma delas ficou conhecida como “a solidão da mulher que namora”, no TikTok, e já conta com mais de 3.000 vídeos usando a hashtag e milhões de likes. E o conceito que de vez em sempre revivem de “esposa troféu” – também uma febre na rede.
Te fazendo um favor caso você não queira pesquisar, ambas resumem como o sistema de (auto)negligência atua sobre mulheres. No primeiro caso, daquelas que abrem mão das próprias amizades, hobbies e relações em prol de um namoro – hétero-cis-normativo, diga-se de passagem – porque os namorados podem ter uma vida fora do relacionamento, mas elas estão ocupadas demais se dedicando integralmente para terem também. E no segundo, a ideia de que estar em casa, não trabalhar e optar por uma vida 100% doméstica é, na verdade, um privilégio – sabemos que na real é trabalho não remunerado.
Confesso que fiquei particularmente assustada com a repercussão dessas trends, com a quantidade exorbitante de meninas e mulheres se identificando. Parece que estamos, com alguma variação que inclui um ou outro direito civil e uma rotina de skincare, reproduzindo histórias de negligências afetivas, de saúde e de relações muito parecidas com as das nossas mães e avós.
Não é da minha conta o que você faz da sua vida, mas eu queria muito (e digo isso me encarando de frente também) que cuidar dela com toda a integralidade que ela merece não estivesse fora da lista. Eu desejo coisas intangíveis para mulheres: criatividade a mil, sonhos, liberdade, arte, ocupação social e política. Mas eu também quero coisas bem tangíveis para a gente: que você tenha com quem organizar e dividir as tarefas da festinha do seu filho, o trabalho da casa, as reclamações do dia; que você consiga marcar religiosamente suas idas ao médico, fazer todas as suas refeições com atenção, beber água (rs); que ter amizades – essa coisa tão essencial para a nossa lucidez – não seja algo que você só faz ou mantém quando não tem um parceiro(a) amoroso. Eu acho que não é pedir demais, né?
O tanto que eu gostei desse texto não é brincadeira! Infelizmente ele reflete a realidade social das mulheres, que são sempre enquadradas no papel de cuidadora, seja dos pais, dos filhos, do marido/namorado, da casa, e dificilmente ocupam o lugar de cuidada. Tão forte é esse papel que algumas sequer acham que deveriam receber cuidados. E, da onde eu vejo, ser cuidada também é receber afeto, respeito e ser vista pelo outro.