#57 Se o ChatGPT parar de funcionar você ainda consegue trabalhar?
A última fronteira com a tecnologia: nossa inteligência.
Não posso negar, eu tenho muito receio em entregar o que parece ser a última fronteira com a tecnologia: nossa inteligência.
Por ser uma pesquisadora de longa data dos impactos do uso excessivo da tecnologia, de early adopter muitas vezes viro uma das adeptas mais tardias, pesquisando como os maias e os incas em prol da minha saúde mental.
Delegar meus pensamentos, minhas pesquisas, minha curiosidade, tudo para uma inteligência que ainda não compreendemos muito bem que impactos gera parece bastante arriscado. Pra mim é parecido com o ato de escolher uma psicóloga, uma terapeuta.
O chat GPT na festa de fim de ano da firma
Para quem estamos abrindo a nossa mente?
Não dá pra negar que a IA ajuda, acelera, resume, corrige, dá ideias. Só que, no meio dessa eficiência toda, tem algo que está sumindo devagar, quase sem a gente perceber: o exercício de pensar com calma, de duvidar, de tentar por conta própria antes de pedir ajuda para uma máquina.
Não é um manifesto contra a tecnologia (aqui na Contente nunca é). Mas sim um convite para olhar de perto o que está acontecendo com o nosso jeito de aprender e criar quando a resposta certa aparece antes mesmo da pergunta se formar direito.
Um perigo sutil: deixar de pensar porque a IA pensou por você
Estudos recentes mostram que o uso excessivo de IA pode atrofiar nosso pensamento crítico, reduzir a criatividade e gerar dependência. Um relatório da Unesco (2023) alertou que, sem supervisão crítica, o uso contínuo da IA em ambientes educacionais pode limitar a autonomia cognitiva (que já não anda lá essas maravilhas) e promover uma "terceirização do raciocínio".
Outro estudo na Nature Human Behaviour (2023) mostrou que participantes tendem a aceitar respostas da IA mesmo quando estão erradas, apenas pela forma confiante como são apresentadas.
E o que a IA considera uma boa resposta?
Quando a gente delega demais, deixa também que a IA decida o que vale a pena saber.
E aí entra um conceito importante: o preconceito epistêmico.
Esse tipo de preconceito acontece quando certos saberes são desvalorizados ou ignorados – não por falta de valor, mas porque não seguem a lógica dominante. A IA, treinada com dados do passado e padrões hegemônicos, tende a reforçar essas estruturas.
A professora Leda Paulani, no vídeo “A inteligência artificial vai pensar por você?” (Boitempo, 2023), lembra que “conhecimento não é neutro”. E que a IA, ao parecer objetiva, pode estar apenas reproduzindo os filtros de sempre: os que silenciam, hierarquizam, excluem.
Essa crítica também aparece na fala da neurocientista e psicóloga americana Molly Crockett, no podcast Mind & Life (2024):
"Pessoas que têm muito a ganhar com a IA querem substituir esse ato de conhecimento orgânico e comunitário por uma máquina que supostamente pode saber tudo. Mas isso falha totalmente em reconhecer todas as diversas maneiras pelas quais sabemos coisas – através de nossos corpos, da história de nossas próprias experiências, de nossos relacionamentos uns com os outros. E nossa capacidade de entender o mundo está tão ligada à comunidade. Nenhum pensador individual pode entender tudo. Nenhum indivíduo pode saber tudo. Somos limitados como indivíduos, mas podemos transcender esses limites quando trabalhamos juntos”.
Pra você que tá fazendo terapia pelo ChatGPT
Crockett alerta para os limites do que a IA é capaz de transmitir:
“Quando você descreve [modelos de IA] como semelhantes aos humanos está estreitando o que consideramos ser humano, e isso pode ter consequências negativas no futuro.”
Ela também faz uma comparação entre falar com um chatbot do Dalai Lama e encontrá-lo presencialmente:
“Há algo que é insubstituível sobre humanos estarem fisicamente juntos e transmitirem compreensão através de nossos corpos, através de nossas presenças corporificadas.”
Em outras palavras: a IA pode repetir palavras, mas não carrega a presença. Não entrega o gesto. Não transmite o silêncio que também comunica.
Uma tremenda praticidade que pode te deixar cada vez mais… triste
A gente não só aprende melhor em grupo, mas a gente precisa dessa troca com os outros para sermos felizes.
Os custos reais do auxílio de uma inteligência artificial nos apoiando tanto só saberemos futuramente. Mas tem algo que a gente já sabe: relações humanas fortes são o principal fator de bem-estar e longevidade (estudo de Harvard sobre Desenvolvimento de Adultos, em andamento desde 1938).
Terapeutas, amigos, parceiros românticos ou qualquer tipo de pessoa de quem possamos buscar apoio não estão disponíveis 24 horas por dia, mas a IA está disponível 24 horas por dia. E essa é uma observação muito interessante.
Sherry Turkle, psicóloga e antropóloga do MIT, que há muito tempo é uma voz para pensar sobre como as tecnologias mudam nossos relacionamentos, escreveu sobre como criar expectativas de que o apoio social estará disponível 24 horas por dia pode ter efeitos colaterais prejudiciais em nossas relações humanas, o que eu acredito que até que os defensores mais entusiasmados da IA não gostariam de eliminar completamente, não acham?
A troca entre pessoas é o que fortalece não só o que a gente sabe, mas também quem a gente é. A IA pode ampliar sua produtividade, mas só as pessoas ampliam sua presença no mundo. E a segunda é mais importante que a primeira. Que a gente não se esqueça.
Como você tem equilibrado o uso da IA com o que é só seu? Quais conhecimentos você poderia confiar mais em aprender com a sua comunidade do que com a IA?
Excelente! Esta é sempre uma pergunta que me faço ao delegar algumas tarefas para a AI: o que meu pensamento crítico diz sobre o que o ChatGPT trouxe? Adorei ler os dados que vocês trouxeram. Só me faz ser ainda mais crítica ao responder a minha própria pergunta.
"O conhecimento não é neutro".... obviamente que não é, se por ""conhecimento"" entendemos qualquer crença ou discurso, incluindo a falsidade.