#54 Como um menino doce da minha família se tornou um odiador profissional na internet
A educação em casa não é a única responsável por criar “meninos problemáticos”. Qual é o buraco enfrentado pelas escolas?
Quero começar esse texto com um relato pessoal, que só vai existir aqui porque tenho certeza de que, além de estar resguardando a identidade das pessoas envolvidas, o tema já se tornou público há muito tempo no círculo social ao qual eu e as pessoas envolvidas pertencemos.
Era o fim da pandemia quando encontrei, por acaso, pesquisando no Twitter sobre uma fofoca interiorana da cidade em que cresci, o perfil de uma pessoa que eu vi nascer. Esse menino, que até então era alguém doce, educado, bom filho e aparentemente muito ingênuo, tinha como foto de perfil o ex-goleiro Bruno (condenado pelo assassinato de Eliza Samudio) e uma bio com referências explícitas ao antissemitismo.
Eu gelei. Parecia uma brincadeira de mau gosto. O usuário tinha o mesmo nome dessa pessoa (que, como o meu, não é um nome tão comum assim), mas não poderia ser ele, pensei. Nas fotos do Twitter, reconheci o quarto e a casa que apareciam ao fundo de algumas postagens. Ele não mostrava o rosto, mas publicava fotos do computador com jogos, trechos de lives na Twitch e imagens de animes. Eram os únicos conteúdos aparentemente neutros naquele perfil.
Num impulso, levei os prints aos seus responsáveis, que não entenderam quase nada do que expliquei. Não sabiam direito como funcionava o Twitter, não lembravam da história do feminicídio de Eliza, não faziam ideia do que significava “antissemitismo”. Só perceberam a gravidade do que estava acontecendo depois de verem as mensagens de teor racista publicadas pelo próprio filho: um menino negro.
Como explicar para uma família que, apesar da falta de recursos financeiros e da distância geracional, acompanha o boletim escolar do filho com atenção, vigia o uso do celular dele, sabe com quem o menino anda e o leva à igreja toda semana que aquele mesmo adolescente que parece gentil em casa é quem está gerando conteúdo de ódio na internet? A conta não fechava. E o mais doloroso: continuou sem fechar mesmo quando todas as provas estavam diante deles.
O desfecho é íntimo demais para ser compartilhado aqui. Mas o que posso dizer é que tudo isso poderia ter tomado outro rumo se uma professora, que já havia percebido sinais desse comportamento em sala, tivesse contado com apoio institucional. Ela notou olhares, falas sutis, piadas carregadas. Mas não tinha ferramentas pedagógicas, tempo de planejamento nem espaço seguro dentro da escola para trazer essas questões à tona com a profundidade que elas exigem.
O que separa o que a escola vê do que ela consegue fazer?
Se por um lado é verdade que muitas famílias estão desconectadas das dinâmicas das redes sociais, por outro é injusto responsabilizá-las sozinhas por comportamentos que vêm sendo moldados, em silêncio, por uma internet sem mediação. A escola deveria ser um contrapeso a isso. Mas nem sempre consegue.
A divisão entre escolas públicas e particulares ajuda a entender parte do problema – mas ela não explica tudo.
As escolas públicas enfrentam desafios estruturais enormes. Segundo levantamento da PwC, mais de 8 milhões de estudantes – 21% das redes municipais e estaduais – estudam em instituições sem acesso à internet banda larga. Outros 124 mil alunos estão em escolas que nem sequer têm energia elétrica. No ensino médio, uma em cada 4 escolas ainda não tem conexão adequada para atividades de ensino e aprendizagem. O básico ainda é um privilégio. Assim como concluir o ensino médio no Brasil, por exemplo.
Para se ter uma ideia, a taxa de conclusão do ensino médio no país é uma das menores entre os 13 países do G20. Essa etapa da formação é justamente a que apresenta os maiores índices de evasão escolar. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE, divulgada no segundo semestre de 2023, aponta que apenas 30,6% da população com 25 anos ou mais concluiu o ensino médio.
Esse cenário levou o governo brasileiro a oferecer incentivos financeiros aos estudantes dessa etapa, com o objetivo de melhorar esses números e conter a evasão escolar na fase final da educação básica.
Por outro lado, mesmo as escolas particulares, que contam com mais infraestrutura e recursos pedagógicos, esbarram em obstáculos reais. Muitas vezes há resistência em tratar temas como bullying e ciberbullying de forma contínua e crítica. Falta engajamento dos alunos, que muitas vezes enxergam esses temas como “palestrinhas obrigatórias”. E falta profundidade nas abordagens, que tendem a se limitar à responsabilização individual e ao apelo moral. O discurso vira cartaz, não conversa.
O que falta para que a gente chegue lá?
Há alguns avanços em curso. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017, reconhece a importância de desenvolver as competências socioemocionais em todas as etapas da educação básica. E essas competências não se limitam a “aprender a lidar com sentimentos”. Elas estão organizadas em três grandes eixos: pensamento crítico e criativo, colaboração e comunicação e autogerenciamento emocional. Ou seja: também falamos aqui de repertório para viver em sociedade, lidar com conflitos, argumentar com ética e entender a própria responsabilidade nas interações digitais.
A BNCC também propõe disciplinas como “Projeto de vida”, presente em algumas redes públicas, por exemplo, com o objetivo de ajudar o aluno a refletir sobre seu futuro. Mas o formato ainda é limitado. Faltam conexões com a realidade concreta dos estudantes. Os conteúdos muitas vezes não se aprofundam nas questões que os jovens realmente enfrentam: o impacto da comparação constante nas redes sociais, a banalização do discurso de ódio, os atravessamentos de raça, classe e gênero, o aliciamento por grupos extremistas, a solidão on e offline. E, quando isso é ignorado, o currículo se torna pouco eficiente.
Além disso, precisamos fazer perguntas incômodas: os professores estão preparados para lidar com isso? Existe formação continuada voltada para a educação midiática e socioemocional? Existe tempo na rotina escolar para esse tipo de planejamento? Os alunos têm espaço seguro para se expressar, questionar e se escutar? E os pais, estão sendo incluídos nesse processo?
Hoje, o que temos são boas intenções sem infraestrutura, projetos isolados e professores sobrecarregados. A educação socioemocional e midiática ainda é tratada como anexo, não como parte do corpo da formação básica.
Um panorama no Brasil e no mundo
Em países como a Finlândia, a Nova Zelândia e o Canadá, a educação socioemocional e midiática faz parte do DNA da escola. São temas transversais, que aparecem em várias disciplinas e se conectam ao cotidiano do aluno. O estudante aprende a analisar memes, debater discursos de figuras públicas, discutir sentimentos diante de fake news e refletir sobre o impacto de comentários online. A formação é feita de dentro pra fora, e não como um pacote pronto.
No Brasil, o movimento é mais recente e ainda muito desigual. Enquanto algumas escolas particulares experimentam práticas mais avançadas, outras resistem às discussões de gênero, raça, violência e internet por medo da reação das famílias. Já nas redes públicas, há experiências inovadoras, mas elas costumam depender da motivação de um ou outro “educador-herói”. Falta política pública estável e incentivo à formação docente.
Por isso, o país segue com indicadores alarmantes de saúde mental entre jovens, episódios crescentes de violência escolar e adolescentes mergulhados em comunidades digitais extremistas – enquanto boa parte das escolas ainda discute se vale a pena falar sobre isso.
As soluções da Contente
Na Contente, a gente acredita que dá para fazer diferente. Estamos construindo #ainfânciaqueagentequer, um movimento que nasce da escuta e da urgência de criar uma internet – e uma sociedade – mais seguras, mais saudáveis e mais justas para as crianças e os adolescentes.
Uma das nossas principais iniciativas é o projeto Contente na Escola, que leva conteúdo sobre internet, redes sociais, bem-estar, discurso de ódio e saúde emocional para dentro da sala de aula. Por falta de recursos e por uma pandemia que nos atravessou sem precedentes, até agora só conseguimos realizar um piloto deste projeto, que aconteceu em uma escola pública de São Paulo. A proposta é ajudar alunos e educadores a trabalhar esses temas de forma prática, contextualizada e com apoio real. Não são materiais genéricos: tudo parte de perguntas que os adolescentes já estão fazendo. Tudo parte de escuta.
Sabemos que não existe fórmula mágica. Mas acreditamos no poder de formar redes de apoio entre professores, alunos e famílias. De incentivar o protagonismo juvenil. De dar repertório crítico para lidar com o que está além da prova de matemática: os algoritmos, os grupos de mensagens, os influenciadores, o medo de não pertencer, a exposição diária ao julgamento online.
Se você trabalha com educação e também acredita nisso, que tal nos escrever sobre possibilidades dentro da sua instituição, sua escola ou na empresa de educação em que você trabalha? No paralelo, seguimos na luta para que políticas públicas também sejam levantadas.
Enquanto isso não virar conteúdo estruturado, parte da cultura escolar, vamos continuar enxugando gelo. E deixando meninos doces se perderem em quartos escuros, diante de telas que os ensinam a odiar.
O contato do professor com seus alunos acontece de uma forma tão magnífica quanto poucas coisas na vida. Não como uma sobreposição aos pais, mas através de um contato com quem aquela pessoa realmente se torna e age no coletivo. É essencial.
Sou extremamente privilegiado e grato aos meus professores da adolescência por terem descoberto e incentivado em mim características que só confirmei recentemente.
Por mais psicólogos nas escolas!