Você não é uma abelha, deixe de ser consumido pelo zumbido
Uma mulher está sentada à janela do avião. Uma criança, num assento próximo, começa a chorar porque quer trocar de lugar com ela. A mulher recusa. Alguém (que não era a mãe da criança, rs) pega o celular, grava tudo, e o resto é história — ou melhor, espetáculo. O vídeo viraliza, as opiniões inflamam, os seguidores aparecem. Milhões deles. Em menos de uma semana, a protagonista do voo, até então uma desconhecida, se torna uma microcelebridade nas redes. Mas o ponto aqui não é discutir se ela deveria ou não ter cedido o assento. O que realmente importa é entender como chegamos ao ponto de transformar qualquer coisa — e qualquer pessoa — em palco.
No livro No Enxame: Perspectivas do Digital, o filósofo Byung-Chul Han utiliza a metáfora do “enxame” para descrever o comportamento das massas conectadas online. Diferentemente de uma comunidade ou multidão tradicional, o enxame digital não possui coesão, direção ou propósito claro. Não há líderes nem ideais compartilhados. É apenas um agrupamento de indivíduos solitários, conectados por reações instantâneas e fragmentadas.
Nesse sentido, as redes sociais transformaram a esfera pública em um espaço dominado por impulsos e estímulos momentâneos, onde cada curtida, comentário ou compartilhamento funciona como o zumbido de uma abelha no enxame. O ruído coletivo, por sua vez, cria a ilusão de participação ativa e debate significativo, mas na realidade, estamos apenas presos a ciclos de eco e reação. Não dialogamos, apenas reagimos. Não refletimos, apenas consumimos.
É aqui que histórias como a da mulher no avião ganham vida. Não porque têm profundidade ou relevância real, mas porque são perfeitas para o formato da economia digital: curtas, carregadas de emoção e fáceis de espalhar.
E por que fazemos isso? Por que quanto mais barulho, melhor. Não importa se é por indignação ou curiosidade, porque o algoritmo não faz distinção entre amor e ódio. Ele só vê o tempo que você passa olhando para a tela. E, assim, uma mulher que disse "não" a uma troca de assento se torna uma figura pública.
Jaron Lanier, em sua crítica à economia da atenção, vai além: as redes sociais funcionam como máquinas de pavlov: aperte o botão do escândalo e veja milhões de pessoas salivarem. Ao dar palco para histórias como essa, alimentamos um mercado publicitário que sabe muito bem como transformar pseudo-indignação em dinheiro. As marcas, como predadores habilidosos, enxergam nessas microcelebridades uma oportunidade de entrar na conversa, de "surfar no hype", como dizem.
Mas o que acontece depois que o barulho passa? Essa é a parte cruel da história. A mulher da janela do avião agora tem dois milhões de seguidores, mas o que eles esperam dela? Provavelmente, mais caos. Mais situações que confirmem ou desafiem a ideia que criaram sobre ela. É uma audiência instável, volátil, que não está ali por admiração, mas pela promessa de entretenimento ou conflito. Ela não é vista como uma pessoa, mas como uma função: o “personagem do momento”.
E, claro, isso tem consequências. Como você constrói uma narrativa para milhões de pessoas que só te conhecem pelo pior dia da sua vida? Como você sustenta uma audiência que não está realmente interessada em quem você é? Essa é a armadilha da economia da influência: ela eleva pessoas comuns a alturas inimagináveis, apenas para deixá-las vulneráveis ao esquecimento ou, pior, ao próximo cancelamento.
A pergunta "por que a gente dá palco?" é também sobre o tipo de mundo que estamos ajudando a construir. Quando transformamos cada conflito trivial em entretenimento, estamos reforçando uma cultura onde o valor das pessoas é medido por sua capacidade de gerar treta, buzz, barulho, zumbido. E isso diz muito mais sobre nós do que sobre a mulher na janela do avião.
Talvez a resposta não seja desligar o celular ou ignorar o barulho, mas aprender a olhar para ele com mais cuidado. Nem tudo precisa de palco, nem todo mundo precisa ser audiência. A pergunta é: o que escolhemos aplaudir e por quê?
Incrível como você sintetizou tudo que eu estava pensando desde o início dessa “agonia”. 😪
o caso já tem alguns dias, e embora eu tenha visto opiniões semelhantes, nenhuma me representou tão bem quanto essa. Obrigada Ylanna!