A gente tá perdendo humanidade?
Quando pessoas comuns se tornam radicais irreconhecíveis
“Como pessoas comuns podem se tornar radicais irreconhecíveis?”. Escrevi este texto para a Contente no dia 08/01 de 2023. Ele era uma espécie de análise sobre os atos contra a democracia que levaram o palácio dos Três Poderes a uma destruição patrimonial que nem se comparava à ruptura institucional que aquilo representava. E também falava sobre a dissonância cognitiva, um processo psico-comportamental que, em poucas linhas, faz com que a pessoa crie e acredite em realidades paralelas que reafirmam a sua visão de mundo – mesmo que todos os fatos apontem para o oposto.
Neste momento, se você tem passado por uma fadiga de ler coisas sobre política, polarização ou assuntos correlatos, eu gostaria muito de te fazer um apelo: continue nesse texto. Eu te prometo que ele não é sobre partidarismo, eleições ou figuras políticas batidas que ninguém aguenta mais ouvir o nome. Ele é um relato sincero, quase um experimento antropológico, em que fui observadora e personagem, sobre o que acontece com a nossa humanidade – a nossa, porque olhar a parte obscura de nós mesmos é muito difícil – quando o “eu” fica maior do que o “nós”. Ou quando esse “nós”, na verdade, só existe para que a gente condene quem escolhemos chamar de “eles”.
Para continuar essa conversa, vamos precisar voltar para 2020. Nos primórdios da pandemia, quando tudo que conhecíamos como mundo parecia ruir diante dos nossos olhos, pensei comigo mesma que, se fosse para morrer (hoje pode parecer exagerado, mas não vamos esquecer que o Brasil chegou a ter 6 mil mortes por dia, números de guerra), eu queria ter feito algo que “valesse a pena” antes. Algum projeto social de impacto que brilhasse meus olhos, mudasse a realidade de alguém e, ao mesmo tempo, fosse possível de fazer via telas.
Isso é muito "Black Mirror"
Nessa procura, me deparei com um projeto dentro de um tema que sempre fui aficionada: imigração. Eu não sei muito bem quando isso começou a ser um hiperfoco para mim, mas algo me diz que, se você faz parte das periferias geográficas do país, lê-se Norte e Nordeste, por via de regra, você compartilha um pouco desse sentimento. Parece que todos os espaços que habitamos fora do eixo “de cima” do país não foram pensados para nós. É como ser intruso na própria terra. Mas enfim, essa é uma conversa para outra newsletter. O fato é: o projeto, de uma universidade federal, procurava voluntários para ensinar português do Brasil para refugiados venezuelanos. Em troca, você aprendia um pouco de espanhol também.
No projeto, conheci pessoas de todos os lados daquele país petrolífero que chegou a ser o quarto maior PIB do mundo na década de 90 – e que naquele momento era descrito como terra arrasada por quem cresceu nele. Gente de Caracas, Maracaibo, Puerto La Cruz. Gente que era médica e estava recepcionista, era advogada e estava desempregada, que fazia faxina em troca de refeição.
Eu e os venezuelanos a quem conheci compartilhávamos de um sentimento muito parecido sobre as nossas pátrias: “Como aquele país se tornou este país?”, salvo as devidas proporções. Pude aprender muito e receber muito mais do que doei naquele projeto. Comprei livros sobre a Venezuela e sua queda econômica, sobre a influência ou não dos Estados Unidos, sobre as relações com o Brasil antes e depois da guinada autoritária. Mas aprendi muito mais sobre nós, brasileiros. Aquelas pessoas relatavam coisas muito semelhantes àquele episódio de "Black Mirror", quem lembra? Um em que soldados são submetidos a uma tecnologia que os faz enxergar outros seres humanos como baratas – para, assim, discriminá-los e subjugá-los sob uma “boa” desculpa: não são humanos, são ameaças.
O meu sonho latino-americano de sermos o país mais acolhedor, quente, aberto e amigável dos trópicos foi por água abaixo. Nós não somos. Até hoje, imigrantes haitianos nos grandes centros como São Paulo são expostos a todos os tipos de violência. Os venezuelanos, nos mesmos Norte e Nordeste, periferias deste país, também são. “Será que ninguém aprende nada nessa p#rra?” Pensava eu.
A parte obscura de nós mesmos
O spoiler é que eu também não aprendi muito. Nenhum de nós. Existe um livro, com o mesmo título deste subtítulo, que explica por uma visão psicanalítica e histórica a nossa relação com a perversidade. Com aquele desejo, quase indulgente, de ver o outro – ou pior, ser o agente que fará o outro – sofrer. Por discordarmos, por enxergarmos diferenças como bônus track de humanidade: quanto mais diferente, menos parecido comigo, menos humano; porque, em algum lugar, existe um resquício de superioridade que nos impede de descer dos nossos altares particulares para olharmos para o que não é familiar.
Acontece que, quatro anos depois desse projeto, que teve duração de oito meses, nos quais eu tive tempo, interesse e genuína vontade de conhecer mais sobre aquelas pessoas, voltei a falar com uma delas em uma circunstância muito ruim. E, claro, esse relato só acontece aqui porque tenho certeza que ela não lerá e resguardarei a sua identidade.
Na ocasião, vi um status de WhatsApp dessa pessoa com uma mensagem de ódio muito forte sobre a tragédia do Rio Grande do Sul. O print, tirado de um grupo de Facebook de algum usuário com “Pr.” (abreviação de pastor) no início, relacionava a pior tragédia climática do estado com o fato do governador Eduardo Leite ser gay, quase como alguma espécie de “castigo” divino. Além, claro, de também fazer ofensas diretas a religiões de matriz africana. Era a primeira coisa que eu via sobre essa pessoa em anos – e era a pior coisa possível.
Resolvi responder e tentar conversar, entender de onde vinha aquele ódio – em um português bem escrito, inclusive – da parte de alguém que há muito pouco tempo atrás era o alvo da vez. O mesmo discurso de “castigo”, “maldição”, “ameaça” foi usado a rodo pelas mesmas autoridades políticas e religiosas do Brasil sobre imigrantes venezuelanos. Como poderia agora essa pessoa, frente a uma tragédia que, veja só, criou uma onda de migração climática no país, ser o soldado de "Black Mirror" a ver os outros como “baratas”? Como pode alguém que eu conheci, que nunca teve uma fala odiosa em todos aqueles meses, ter se tornado um radical irreconhecível que defendia agora a dissolução da democracia no Brasil? A conversa foi de mal a pior. Eu não tive didática nem paciência para explicar nada. Me sentia ofendida, traída em algum lugar e, mais que isso, senti arrependimento por ter ensinado “a minha língua” (apesar de não ter manifestado isso para ela, o block veio antes, ainda bem) para “alguém de fora”, que agora menosprezava pessoas daqui de dentro. Veja, eu jamais pensaria essas coisas em qualquer outra circunstância, o ódio é extremamente contagioso.
Me envergonho muito de admitir isso; mas não há paladinos na internet, na vida, quando estamos a sós nas nossas cabeças, com emoções à flor da pele.
Não estou dizendo que temos que tolerar o intolerável ou sermos professores em tempo integral de todas as causas sociais. Também não estou dizendo que esse pensamento triste que me ocorreu por 30 segundos (que me corrói até agora) e que não foi manifestado é equivalente a cometer crimes de ódio contra minorias nas redes sociais – como aquela mensagem fazia. Mas é muito mesquinho achar que todo um projeto social não valeu a pena, simplesmente porque uma pessoa, que não representa o todo dos beneficiados, teve uma fala de ódio que desencadeou em mim o mesmo sentimento – só que com um alvo diferente.
Os “gradientes”
Pessoas que amamos e admiramos podem ser ótimas conosco e péssimas com os outros. É o que chamo de “gradientes” ideológicos: alguém pode ter comportamentos e atitudes extremados dependendo de suas relações, contextos e privilégios. Pais, tios, avós, amigos distantes com quem você não fala sobre temas mais “sensíveis” podem ser, ao mesmo tempo, os mais gentis do mundo com você e terem as falas mais horripilantes sobre determinados grupos de pessoas. Quem não viveu isso na própria família nos últimos anos? E o que a gente faz com tudo isso? Não é uma pergunta retórica, eu realmente não sei.
Enquanto estamos calejados, decepcionados, sem paciência para “ensinar” (e eu não tiro a razão de quem se sente assim), do outro lado, existem pessoas com tempo, dinheiro e máquina (Telegram, WhatsApp, Facebook) para convencer das ideias mais contraditórias até mesmo o mais afetado dos indivíduos. E se desesperar só a cada quatro anos, para tentar reverter um processo que acontece todos os dias, chegando direto no celular de milhões de pessoas, com a potência da inteligência artificial por trás, não vai nos salvar.
Eu não quero te desesperar e não quero sucumbir ao ódio também; não existe “ódio” do bem. Ele nos irracionaliza, paralisa, não serve, pelo menos não para mim, nem como propulsor de mudança. Quero, sim, continuar me sentindo indignada, porque essa, sim, me move desde que me entendo por sujeito. Foi ela que me fez entrar naquele projeto tão importante para mim e para tantos irmãos de fora. É ela que me faz escrever esse texto agora. E, se existem gradientes, significa que a mistura não está uniforme, homogênea, opaca. A gente ainda tem chance de colorir. Só precisamos descobrir como – o quanto antes.
Me identifiquei muito com teu texto Ylanna. Há poucos dias uma prima me cobrou posicionamento sobre um assunto polêmico e eu disse pra ela que tinha me aposentado de me posicionar dos assuntos que mais me tocam, porque eu perdi completamente a capacidade de diálogo. Eu quero logo é subir no salto e chamar de burrohipócritaperverso e daí pra baixo. Então me calo, porque sei que não vai ajudar em nada. E daí comecei a refletir o que ler, estudar, fazer, pra matar em mim essa incapacidade de diálogo que 2018/2020 me trouxe. Eu ainda não sei.
Meu Deus! Que texto! Que impacto. Eu amei sua escrita e amei os questionamentos levantados, preciso de um tempo para refletir esses temas e degustar cada caractere dessa newsletter.